I – Introdução
A quarta turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou, com conclusão de julgamento em setembro de 2004, em feito que contou com a participação da ADVOCACIA VINICIUS DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, a tormentosa questão relativa aos limites da indisponibilidade de bens dos administradores de instituições financeiras que sofrem intervenção pelo Banco Central do Brasil. Para se ter uma noção da divergência relacionada à questão, pode-se dizer que o recurso especial foi provido em sua totalidade por três votos a dois, reformando-se assim as decisões tomadas nas instâncias ordinárias. Destaque-se também que a nem mesmo o Ministério Público escapou de apresentar manifestações contraditórias, já que apresentou dois pareceres, cada um em um sentido diverso. Inicialmente, devem ser esclarecidos os fatos. Em 1994, o Banco Central do Brasil, com base na lei 6024/74, decretou intervenção no grupo Hercules, constituído pelo Banco Hércules S.A., Hercules Corretora de Valores Ltda., Hercules Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários e Consórcio Mercantil S/C Ltda. Como decorrência da decretação de intervenção, em virtude do artigo 36 da norma em questão, todos os bens dos administradores passaram à condição de indisponibilidade, cuja função é proteger os credores da instituição sob intervenção. Ao contrário do que ocorre ordinariamente, quando os bens dos administradores se mostram insuficientes para que todos os credores sejam satisfeitos, no caso sob enfoque, a Sra. Vera Lúcia de Araújo Assunção Costa – cuja família é até hoje controladora de outra instituição financeira, o Banco Mercantil do Brasil – tinha em seu patrimônio bens que apresentam valores superiores ao total da dívida da instituição sob intervenção. Consta efetivamente, nos autos da ação de responsabilidade civil em curso perante a 3ª Vara de Falências de Belo Horizonte um laudo pericial que demonstra que a soma de seu patrimônio imobiliário atinge praticamente o dobro do valor total da dívida no momento da intervenção. Após alguns anos de intervenção, período no qual nada recebeu, com consequências óbvias não só para a manutenção de seu padrão de vida como também para seu sustento e para o exercício de sua defesa nos processos judiciais em que é ré, a Sra. Vera Lúcia pleiteou ao juízo falimentar a liberação dos dividendos das ações que possui das empresas do grupo Mercantil do Brasil, com o que, segundo alegou, a integralidade de seus bens continuaria indisponível, mas poderia receber recursos que lhe garantiriam arcar com seus gastos normais e com a defesa de seus interesses em juízo. Registre-se que, desde a decretação da intervenção, todos os dividendos distribuídos à Sra. Vera Lúcia vinham sendo depositados em uma conta posta à disposição do Juízo de 1º grau. Não havendo nenhuma regra expressa a respeito da liberação de dividendos ou de quaisquer frutos na lei 6024/74, o pleito foi indeferido em primeiro e em segundo graus, em decisões nas quais se usou, por analogia expressamente indicada no artigo 34 da lei, o definido na lei de falências. Contra a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a Sra. Vera Lúcia interpôs recurso especial, que foi admitido e encaminhado no início do ano 2000 ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi autuado como recurso especial 243.091, sob a relatoria do eminente Ministro César Asfor Rocha. Como o recurso não tinha sido apreciado até outubro de 2002, a recorrente, aduzindo que far-se-ia necessária a liberação dos recursos depositados na conta até mesmo para que pudesse fazer frente a suas despesas diárias, moveu medida cautelar, pedindo a liberação imediata dos dividendos acumulados. A ação cautelar foi também distribuída ao eminente Ministro César Asfor Rocha, recebendo o nº 5.674.
II – A discussão posta a julgamento
Como visto, o recurso especial examinou a questão da indisponibilidade, não só sobre os bens de um administrador, como também dos frutos deles decorrentes, em virtude de uma intervenção decretada pelo Banco Central. Da lei 6024/74, importam os artigos 34 e 36. Enquanto o “caput” deste último determina que “os administradores das instituições financeiras em intervenção, em liquidação extrajudicial ou em falência, ficarão com todos os seus bens indisponíveis não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até apuração e liquidação final de suas responsabilidades”, o art. 34 define aplicar-se à liquidação extrajudicial “no que couberem e não colidirem com os preceitos desta lei, as disposições da Lei de Falências” (Decreto-lei nº 7661/45). A expressão “no que couberem e não colidirem” foi objeto do julgamento ora comentado. Em que pese nada ser definido na lei 6024/74 a respeito da questão sob julgamento, a lei de falências tem previsão expressa a respeito, definindo que devem ser arrecadados também os rendimentos do falido, facultando a este somente, nos termos do artigo 38, o arbitramento de uma módica remuneração, ouvidos o síndico e o representante do Ministério Público. Efetivamente, não resta dúvida no meio jurídico de que, em um processo de falência, não só os bens dos falidos passam à condição de indisponibilidade como também todos os seus frutos. A esse respeito, várias foram as lições mencionadas ao longo do julgamento, feitas por doutrinadores da estirpe de Sampaio Lacerda, Wilson de Souza Campos Batalha e José da Silva Pacheco. Coube ao Superior Tribunal de Justiça, no caso em comento, avaliar se o mesmo entendimento deveria ser utilizado para o caso de uma intervenção extrajudicial. Para a definição do julgamento, três alternativas se mostraram possíveis, devendo o Superior Tribunal de Justiça definir se a lei das intervenções seria mais, menos ou tão restritiva que a lei de falências, quando se trata de indisponibilidade dos bens dos diretores. Como se passa a verificar, as três correntes tiveram seus adeptos no caso recém julgado. Entendemos que o juiz que proferiu o julgamento em primeiro grau e os julgadores do agravo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais filiaram-se à corrente de que a lei 6024/74 seria mais restritiva que a lei de falências, visto terem indeferido o pedido de liberação dos dividendos por ausência de previsão legal, aplicando aos dividendos a mesma restrição dada aos próprios bens. O entendimento que se mostrou minoritário no julgamento ora comentado, de certa forma, considerou que as duas leis devem ser aplicadas com o mesmo espírito. Assim, se a lei de falências permite que o juízo conceda ao falido uma “módica remuneração”, o mesmo tratamento pode ser dado ao administrador de uma instituição sob intervenção. Frisamos o termo “pode” porque não se tentou estipular uma regra geral, mas apenas aplicar a lei ao caso dos autos, em que – repita-se – os bens dos administradores eram suficientes para o pagamento de todos os débitos da sociedade, circunstância de grande relevo para o julgamento final. A adoção de uma das duas posições acima descritas leva à conclusão de que, em um processo de intervenção extrajudicial, tanto os bens dos administradores como também seus frutos ficam indisponibilizados até a normalização da situação. Como consequência, ou (i) nenhum fruto pode ser liberado, já que não há previsão expressa na lei ou (ii) se algo puder ser liberado, há que se considerar o art. 38 da lei falimentar, possibilitando ao administrador tão-somente o suficiente para que possa arcar com as despesas decorrentes dos processos em que é parte e seu próprio sustento, a critério do Juízo e ouvindo-se a parte contrária. O entendimento majoritário, por seu turno, se deu no sentido de que a lei 6024/74 é, quanto ao ponto, ao menos sob as circunstâncias acima frisadas, menos restritiva que a lei falimentar. Para que prevalecesse este entendimento, como se disse acima, há que se verificar a interpretação dada à expressão “no que couberem e não colidirem” contida no art. 34 da norma. A esse respeito, alegou a recorrente que a o artigo 524 do Código Civil de 1916 (art. 1.228 do Código Civil de 2002) define o instituto da propriedade como a soma de três poderes, quais sejam o de usar, gozar e dispor dos bens. E o gravame contido no art. 36 da lei 6024/74, ao proibir tão somente que os administradores alienem ou onerem seus bens, faz menção somente ao poder de disposição. E, sendo uma norma restritiva de direitos, a interpretação teria que se dar também de forma restritiva. No julgamento da cautelar, que se iniciou em dezembro de 2002 e teve seu fim somente em maio de 2003, a turma acompanhou, à unanimidade, o voto do eminente Min. César Asfor Rocha, que permitiu a liberação de parte dos dividendos depositados, permitindo à autora/recorrente os recursos necessários para o exercício de sua ampla defesa e seu sustento. É elogiável a determinação, na medida em que, ao mesmo tempo em que permitiu à autora fazer frente a suas necessidades básicas, também não esvaziou o próprio conteúdo do recurso especial, o que fatalmente iria ocorrer, caso se desse a liberação total dos dividendos. Quanto à cautela demonstrada, há que se levar em consideração que, como dito no próprio voto do relator, o julgamento tratou de hipótese a respeito da qual o Superior Tribunal de Justiça jamais tinha se manifestado anteriormente. De toda sorte, temos que a decisão foi feliz por adequar a norma legal aos princípios da dignidade da pessoa humana e de que a execução tende apenas à satisfação do direito do credor, nos moldes do art. 659 do CPC.O recurso especial, por sua vez, já redistribuído ao eminente Ministro Fernando Gonçalves, foi incluído em pauta em dezembro de 2003 e teve seu julgamento concluído em setembro de 2004. Ante a conclusão da cautelar, restava à turma julgadora verificar se a liberação dos dividendos seria total ou apenas nos moldes definidos na cautelar. Em termos legais, deveria definir se a expressão acima mencionada contida no artigo 34 da lei 6024/74 deveria ser interpretada de molde a aplicar à intervenção, no ponto sob exame, a legislação falimentar, o que determinaria a liberação parcial, ou não, o que importaria na liberação total. Entre os quatro julgadores que participaram das primeiras sessões de julgamento, verificou-se um empate, tendo os eminentes ministros Fernando Gonçalves – relator – e Barros Monteiro perfilado entendimento de que não comportaria a aplicação da lei de falências ao caso em julgamento, decidindo pela liberação total dos dividendos, enquanto os eminentes ministros Aldir Passarinho Junior e César Asfor Rocha entenderam que a lei falimentar deveria ser aplicada, facultando a liberação apenas parcial dos dividendos. Ante o impedimento do eminente ministro Sálvio de Figueiredo, fez-se necessária a convocação do eminente ministro Pádua Ribeiro, da 3ª turma da Corte, que acompanhou o relator, trazendo em seu voto ensinamentos dos professores Werter Faria e Arnoldo Wald.
III – Conclusão
Do julgamento, ficam, a nosso sentir, algumas lições. A primeira é que a matéria ainda será objeto de discussão doutrinária e em processos judiciais. A segunda é que a conclusão tomada no julgamento não deva ser aplicada para qualquer hipótese de intervenção do Banco Central sobre instituições financeiras, mas somente naquelas em que a situação fática for similar à examinada, em particular quanto à existência de patrimônio dos administradores que suporte toda a dívida da instituição. Por fim, pode-se concluir que a decretação da indisponibilidade dos bens dos administradores não é medida que se encerra em si própria. Se sua razão de ser é garantir os credores quanto ao recebimento de seus créditos, uma vez feito isso, descabe impedir que os administradores tenham liberados recursos que ao menos lhes possibilitem arcar com seu próprio sustento, conforme consta em todos os votos proferidos no julgamento realizado no Superior Tribunal de Justiça.
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O comentário sobre o julgado, que serviu de base para o texto acima, foi publicado na Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais nº 28.
Agradecemos a confiança que nos foi depositada pela cliente e a participação dos Advogados Christiano Gallo Curi e Guilherme Octávio Santos Rodrigues, que atuaram no feito nas instâncias ordinárias e com quem fizemos parceria no caso.